Mãe Bióloga havia se queimado ao tirar o peru do forno no natal.
Soa simples, mas era uma queimadura dolorosa e bem feia.
Não parecia desesperada, mas eu sei que Mãe Bióloga passou todas as pomadas do mundo em seu antebraço em uma tentativa falha de fazer com que a queimadura curasse.
Nada funcionava.
Não tínhamos tempo para médico, dia 27 de dezembro partiríamos para a Amazônia ficando em um hotel na floresta, com direito a vista para o Rio Negro, cachoeira como piscina e pata de onça na porta do quarto.
Acho que você ainda não entendeu.
Era literalmente na floresta.
DENTRO da floresta.

Foi no dia que fizemos o tour pela floresta que eu presenciei algo mágico. Na minha mente de criança de 9 anos, não consegui entender muito a extraordinariedade do evento, estava mais preocupada em não ter uma tarântula pulando em mim, do que prestar verdadeira atenção no mistério que as árvores guardavam.
Mas de qualquer maneira, me lembro com clareza de como me senti ao entrar na mata fechada. Era um silêncio animalesco, não se ouvia nada além das patas dos animais mais remotos quebrando as folhas secas e um constante lapidar dos caminhos traçados por quem usa se arriscar. A folhagem fechada não deixava com que os raios de sol entrassem ser serem filtrados, cada raio passava pela folha verde refletindo no chão, o que o céu gradava.
Mãe Bióloga olhou em volta, com os olhos brilhando de fascínio, disse baixinho para mim.
– Olha, Sô, a gente tá dentro da floresta.
O guia foi caminhando entre as altas árvores contando sobre as espécies e as formas de se localizar na mata. Mãe Bióloga caminhava ao lado dele deslumbrada com a energia que a floresta milenar passava, mas para meros mortais, que não cursaram Biologia no Mackenzie, as espécimes de árvores que a Amazônia serve em seu cardápio é o que há de menos intrigante. Eu e Menino Máximo, nascidos e criados entre pedras, deixávamos com que nossos olhos corressem por cada centímetro autorizando a floresta a nos abraçar. E ela nos acomodava. A cada passo ouvíamos as plantas sussurrarem um “bem-vindo” em nossos ouvidos em vozes ferozes.
Foi apontando para um espécime único, que o guia viu a queimadura no antebraço da Mãe Bióloga.
— O que é isso? — ele perguntou se aproximando para examinar melhor.
— Ah, eu queimei no forno durante o natal.
Mãe Bióloga parecia despreocupada com tal pergunta, mas eu e Menino Máximo sabíamos muito bem o que ela estava aprontando, seus ombros relaxados escondiam, apenas para quem não conhecia, o que seus olhos queriam. Com o aceno de cabeça do guia, sabíamos que o plano secreto de Mãe Bióloga estava na fase final.
Poucas árvores depois, o guia passou os dedos na seiva branca de um tronco e pedindo permissão, passou na ferida de Mãe Bióloga espalhando a gosma com cuidado.
— Deixa assim, não tira. Só amanhã.
Menino Máximo e eu trocamos um olhar que claramente diziam “eu hein…”, mas não tínhamos a audácia de questionar um guia da Floresta Amazônica e uma bióloga.
No café da manhã do dia seguinte, nosso ilustre guia se aproximou da mesa e disse:
— Já tirou?
Mãe Bióloga disse que não.
O guia pegou um guardanapo e passou delicadamente pelo antebraço dela.
O que vimos fez Menino Máximo largar o pãozinho.
Não havia absolutamente nada,
nada
N A D A,
no braço da Mãe Bióloga.
Como se nunca houvesse queimadura.
Até hoje fico incrédula com o que aconteceu. E até hoje Mãe Bióloga diz: “Eu já sabia”. E até hoje Menino Máximo e eu trocamos olhares. E até hoje, a mágica Floresta Amazônica cura corações partidos e queimaduras de peru no natal fascinando quem ousar permitir seu abraço.
Com todo meu amor,
como sempre,
S. Ganeff