Eu e Prima Pisciana queríamos passar a tarde no Shopping JK Iguatemi. Tínhamos apenas treze anos e não éramos responsáveis o suficiente, a critério de nosso pais, para ter um cartão de crédito ou andar por aí com dinheiro, portanto, tínhamos um cartão pré-pago do banco onde se colocava uma quantia exata de dinheiro a se gastar. Se não tivesse o suficiente, o cartão simplesmente não passava.
De qualquer maneira, leitor, se você não é de São Paulo, basta saber que o estacionamento do JK custa 20 reais uma hora. Deu para entender, né?
Colocamos nossas melhores roupas e Tia dos Olhos Azuis deu carona.
Percebia que Prima Pisciana tentava me dizer algo com os olhos, ela os espremia e depois os arregalava como se tentasse me avisar, mas não conseguia saber se estava tentando passar uma mensagem codificada ou se um bicho atingiu seu globo ocular em cheio.
Saímos do carro agradecendo a carona e dizendo que ligaríamos quando quiséssemos ir embora. Assim que colocamos os pés dentro do shopping, Prima Pisciana parou de andar e disse rapidamente me encarando:
— Vamos comer no Spot, tá?
Fomos ao Spot e nos sentamos em uma mesa ao lado da janela. Prima Pisciana nem olhou o cardápio, disse que já sabia exatamente o que queria. Quando o garçom foi retirar nossos pedidos, Prima Pisciana disse que queria a versão kids do prato X e sem nenhuma bebida e nenhum acompanhamento. Assim que ele saiu, ela disse afobada:
— Já vou avisando que não vou pagar os 10% também.
Olhei para o garçom distante e depois para ela.
— Mas o que ele fez?
— Ele não fez nada. Só não posso pagar.
Olhei para o garçom e depois para ela mais uma vez. Não estava entendendo nada.
— Sophie, — ela disse baixinho — é que eu tô pobre.
— Como assim você tá pobre?
Ela balançou a cabeça em negação e se recostou na cadeira.
— Não é nada… deixa para lá.
Nossos pratos chegaram. Prima Pisciana comeu em dois palitos a versão kids do seu prato, e logo pedimos a conta. Percebi como Prima Pisciana endureceu na cadeira quando o papelzinho amarelo chegou até nós. Enquanto examinava a conta, Prima Pisciana disse logo:
— São cinquenta reais na minha parte.
Olhei para os cento e setenta reais na conta.
— Impossível. Deu um total de cento e setenta reais.
— Mas eu disse que não pagaria os 10%.
— É sem os 10%.
Ela arregalou os olhos e empalideceu. Se inclinou sobre a mesa e apenas fez um movimento para que eu lhe desse a conta.
Prima Pisciana soltou o ar com força.
— Ferrou — ela disse em um óbvio choque — eu devo ter visto o cardápio de outro lugar. Você vai ter que pagar para mim.
— Que? Por quê?
— Porque como eu disse, eu tô pobre.
Balancei a cabeça.
— Como assim?
— Sophie, eu só tô. Depois a minha mãe paga a sua.
Ficamos em silêncio.
— Eu só tenho o cartão, não sei se tem dinheiro suficiente, se não passar…
— Sophie, vai passar.
Ela pronunciou as palavras com tanta fé e certeza que eu só concordei com a cabeça.
O garçom veio com a maquininha e eu coloquei meu cartão pré-pago. Prima Pisciana segurava o ar apreensiva, seus olhos mostravam um constante estado de alerta e seu rosto se desfigurava com a tensão.
Coloquei a senha.
Tinha que passar.
Enquanto a maquininha processava, Prima Pisciana estava com a mão na boca. Nos duas sabíamos do risco que corríamos. Como o cartão era pré-pago, se não houvesse no mínimo de cento e setenta reais, não passaria e nós…
— Não passou — disse o garçom olhando para mim.
Olhei em desespero para Prima Pisciana que por sua vez, bateu a cabeça com força na mesa.
— Tenta de novo, moço.
Cruzei os dedos por debaixo da mesa.
Prima Pisciana levantou a cabeça devagar e fixou o olhar na maquininha como se fosse fazer funcionar.
— Não passou.
— Toma, — Prima Pisciana disse passando um bolo de notas de dois para o garçom — tira isso. Faz cento e vinte.
O garçom balançou a cabeça analisando as vinte e cinco notas de dois amassadas, sujas e rasgadas nas pontas. Colocando no bolso do avental, fez o que ela pediu.
Olhei para os olhos arregalados de Prima Pisciana, ela segurou o olhar enquanto eu segurava o ar.
— Não passa também.
Olhei para Prima Pisciana gritando com os olhos que me respondeu com a mesma intensidade.
— Passa o seu cartão — disse a ela.
— Sophie, — ela disse com uma calma que não correspondia com a nossa situação desesperadora, — agora seria uma boa hora de te contar que eu perdi o meu cartão na chuva.
— O que?!
— Daqui a pouco eu volto para cobrar mais uma vez — disse o garçom saindo de perto da nossa mesa. Balançamos a cabeça enquanto ele se retirava.
Olhei para Prima Pisciana com os olhos fulminantes. Os garçons tiraram tudo que havia na nossa mesa. O vaso de flor, o saleiro, o jogo americano, até os guardanapos. Ficamos apenas com a madeira pelada, um cartão pré-pago e nenhum dinheiro.
— Ninguém sabe que eu perdi o cartão — ela disse com a mão na cabeça. — Foi na chuva e…
— Como se perde um cartão na chuva?
— Eu sei lá! Tava chovendo! Ele foi embora por um bueiro. Eu não sei…
— Mas de onde veio esse dinheiro? Esses cinquenta reais?
— Quebrei um cofrinho. Já tava meio velho e vazio não tinha mais um motivo para esperar, sabe? Além disso, era uma emergência, né?
— E tinha só cinquenta reais em notas de dois?
— Tava guardando faz tempo, tá? Você tem noção de como é difícil economizar? E eu sabia que seriam só cinquentas reais aqui. Eu vi o cardápio na internet. Agora, você vai ligar para a sua mãe, e ela vai colocar dinheiro no cartão.
— Minha mãe tá numa reunião. A sua vai.
— Sophie, em que cartão? Perdi na chuva.
— Vem cá, será que é verdade quando dizem que a gente vai lavar os pratos?
Prima Pisciana e eu entramos em um debate sobre o que fazer por meia hora. Mãe Bióloga estava fora de nosso alcance e Tia dos Olhos Azuis não poderia saber que Prima Pisciana havia perdido o seu cartão na chuva. Os garçons apareceram umas cinco vezes para cobrar os cento e setenta reais, mas não havíamos uma solução e não tínhamos coragem de pedir abertamente para lavar os pratos.
— Sophie, o que a gente vai fazer? Eles já tiraram tudo da mesa achando que a gente vai roubar.
Ela apontou em um gesto largo para a mesa pelada.
Encurraladas, ligamos para Tia dos Olhos Azuis, apenas ela poderia nos salvar. Mesmo que o resgate viesse com uma baita bronca.
Leitor, o tempo era curto, Prima Pisciana temia que seríamos expulsas do restaurante, enquanto eu temia que ficaríamos lá para sempre.
Tia dos Olhos Azuis foi até o JK e pediu para Prima Pisciana a encontrar na porta, já que ela não queria entrar no restaurante e passar vergonha. Pagamos os cento e setenta reais e ouvimos durante todo o caminho a bronca de Tia dos Olhos Azuis sobra a conta e o cartão perdido na chuva.
A partir daquele dia, Prima Pisciana e eu sempre andamos com dinheiro e o cartão pré-pago foi para sempre expulso da nossa família.
Com todo o meu amor,
como sempre,
S.Ganeff